Boston, anos 2000.
Imagine uma menina tímida e estudiosa, vivendo uma adolescência saudável entre a escola, a igreja e a internet.
Ela é fã de Radiohead, Björk e Jimmy Eat World, escreve fanfics; toca oboé e flauta; ama “The OC” e “One Tree Hill”; tem uma queda pelo Mr. Darcy em “Orgulho e Preconceito” e rebloga trechos dos especiais de comédia de John Mulaney no Tumblr depois da aula.
Os filmes que vê com o pai cinéfilo guiaram o caminho da sua vida. Dá-lhe Scorsese, Paul Thomas Anderson, Almodóvar, Cassavetes e Gena Rowlands, “Wayne’s World”, “Um Lugar Chamado Notting Hill”, Audrey Hepburn e Cary Grant. Não dá outra: faculdade de Cinema.
Você imaginou uma menina branca, certo?
Bom, essa foi a adolescência de Ayo Edebiri, comediante e atriz vencedora do Emmy. Você deve conhecer Ayo por seu papel como Sydney Adamu na série “O Urso”, por dublar a Inveja em “Divertida Mente 2”, ou ainda, por seu estilo e senso de humor impecáveis. Enfim, é a princesa do povo.
Sem querer dizer que cheguei antes de todo mundo (mas já dizendo), eu acompanho Ayo desde antes da pandemia. Na época, ela fazia stand-up e apresentava, ao lado de Olivia Craighead, o extinto podcast “Iconography”. Nada mais 2020 que desenvolver conexões parassociais com podcasters por se sentir sozinha e perdida em meio a uma crise sanitária mundial.
Apesar do raciocínio rápido e da consciência corporal das atrizes, Ayo é tímida e vulnerável. Fala com frequência da infância sendo a filha única, muito paparicada, de um casal de imigrantes (o pai nigeriano; a mãe de Barbados), de sua adolescência escrevendo fanfics, de ter crescido numa cidade branca como Boston e da absurdez de conquistar o mundo tão jovem.
A carreira de Edebiri decolou, e o sucesso dela me faz feliz demais. Antes dos 30, Ayo apresentou o “Saturday Night Live”, ganhou um Emmy, virou uma it girl e tá gravando um filme com o John Malkovich. Certo dia, numa dessas entrevistas de red carpet, quando perguntada se já tinha imaginado ganhar um Emmy, ela respondeu “lógico que não, meu maior sonho era ter plano odontológico”.
Olhar pra essa mocinha de Boston e tudo que ela conquistou é como ver minha gêmea famosa separada na maternidade: temos a mesma idade, vimos os mesmos filmes, frequentamos os mesmos cantos desse inferninho sem paredes que é a internet…
… E amamos música de gente branca.
É engraçado isso. Tem coisas que são praticamente traição de classe se você é negro, e aparentemente gostar de rock triste é uma delas. O falecido comediante Patrice O’Neal (1969-2011) não perdia a oportunidade de tirar sarro do Radiohead e de como gente branca adoooora a banda.
Pior que é verdade. E não me leve a mal, eu amo o Thom Yorke. O In Rainbows mudou minha vida. Há quem diga que até demais pra uma pessoa negra.
Bichinho de matar com pedra
Minha educação musical veio do meu pai, que toca samba e jazz e tinha uma coleção monumental de vinis; da minha mãe, muito fã de Beatles, Maria Bethânia e R.E.M.; do meu padrasto, presidente do Fã-Clube Oficial Mundinho Bob Dylan, Belchior & Bartô Galeno, e da minha prima Monique, que me emprestou a fita da Britney Spears no Havaí e mudou minha vida pra sempre. Quando decidi que era crescidinha e cool demais, comecei a explorar por conta própria. E tome MTV, NME e Comunidade Discografias no Orkut.
Fui guiada por uma geração de VJs, críticos e curadores musicais que eram verdadeiras enciclopédias, mas não dá pra fugir do fato de que eram brancos ouvindo música majoritariamente feita e curtida por gente branca. Numa época sem streaming ou fandoms em rede social, um artista preto só era levado a sério quando se tornava impossível de ignorar. Ao mesmo tempo, qualquer peido com reverb de dois branquelos de San Francisco era milimetricamente dissecado, analisado e promovido.
Se você estava no mesmo lugar e na mesma época que eu, vai lembrar que música negra era um ponto cego da mídia especializada. A Pitchfork hesitou até o último momento a cobrir álbuns e artistas negros que não fossem unanimidade, como A Tribe Called Quest e Ms. Lauryn Hill. Ela me apresentou os melhores artistas negros da história e centenas de bandas caucasianas completamente esquecíveis.
Como consequência disso, vários dos meus artistas favoritos de uma vida inteira são brancos (Leonard Cohen, Joni Mitchell, Talking Heads, Sonic Youth, Big Star, Yo La Tengo, Portishead); muito brancos (Carpenters, Pavement, Blur, Radiohead); comicamente brancos (Wilco, Joanna Newsom, Belle and Sebastian, Vampire Weekend, Animal Collective) e Taylor Swift (Taylor Swift).
Preto por fora, branco por dentro
Lá fora, existe uma expressão pra pessoas que gostam de “coisas de gente branca”: Oreo. Tipo a bolacha recheada: preta por fora, branca por dentro.
Ser chamado de Oreo é ser acusado de não se vestir como um negro, não falar como um negro e gostar de coisas diferentes das coisas que negros supostamente gostam. Seja lá o que isso signifique.
Esse tipo de pensamento não é recente e não é coisa de gringo. No Brasil, o terrível termo “preto de alma branca” acompanhou Machado de Assis por tanto tempo que até pouquíssimo tempo atrás, a imagem do maior autor do Brasil no imaginário coletivo era de um homem embranquecido.