Resenha: Silvio (2024) não é tão horrível quanto parece
o que não quer dizer que seja bom
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Leitor, senta aqui. Segura na minha mão, respira fundo e olha bem nos meus olhos. Eu sei que vai parecer loucura, mas o filme do Silvio Santos não é tão horrível.
Nem autorizado nem desautorizado por Senor Abravanel, Silvio teve seu momento viral no meio do ano, quando um trailer revelou a escolha de Rodrigo Faro para o papel do apresentador. Depois daquele trailer, eu nunca mais tive paz, e confesso que fui uma das pessoas que tiveram que pagar pra ver. Tanto é que estava ansiosa: cheguei 20 minutos adiantada pro filme do Silvio Santos, estrelando Rodrigo Faro de Peruca.
Encontrei uma sala vazia, e estava pronta pra duas horas de catástrofe e amadorismo, como aconteceu na biopic dos Mamonas Assassinas, uma fanfic escrita pelo Carlos Lombardi com elenco e roteiro de novela do Kwai e fotografia do Teste de Fidelidade do João Kleber. Mas segui com boa vontade. Para minha surpresa (e das outras quatro pessoas que chegaram atrasadas, certamente para ver o filme de forma irônica), Silvio ainda não é um bom filme, mas também não é o completo desastre que o trailer faz parecer.
O bom
É impossível falar de Silvio sem tecer comparações com O Rei da TV, série do Star+ que também conta a vida do homem do Baú, morto em agosto deste ano. Apesar de não ser tão bom quanto a série, Silvio tem um framing device mais interessante— na série, o ponto de partida é o problema nas cordas vocais que pode aposentar o animador para sempre; no filme, a história de Senor Abravanel é emoldurada no sequestro de sua filha, Patrícia Abravanel, em 2001. Evangélica, Patrícia teria falado tanto de Jesus que o sequestrador, Fernando Dutra Pinto, se deu por vencido e acabou a libertando em segurança.
A coletiva de imprensa de uma Patrícia eufórica, sorridente, como se tivesse acabado de voltar de uma viagem pra Porto Seguro, é recriada no filme. Bom trabalho da atriz Poliana Aleixo.
Nada disso é spoiler, tudo aconteceu na vida real: depois de perder boa parte do dinheiro do resgate, libertar Patrícia e ser ferido por policiais à paisana que o encontraram num apart-hotel, o sequestrador foge da polícia, retorna à mansão dos Abravanel no Morumbi e dessa vez faz o apresentador de refém, envolvendo o chefe da Polícia Militar e até o então governador Geraldo Alckmin na negociação. Do outro lado, os policiais civis que perseguiram Fernando lá no começo querem salvar o dia e finalizar o trabalho com as próprias mãos.
A melhor parte? Toda a negociação para socorrer e libertar Fernando em segurança foi intermediada pelo próprio Silvio Santos, com quem seu sequestrador instantaneamente se conecta.
Infelizmente, nem essa ótima reviravolta nem algumas boas atuações (como a de Poliana Aleixo no papel de Patrícia e do ator Johnnas Oliva, que interpreta Fernando no filme e na série), são suficientes pra tirar nossas mentes dos péssimos diálogos. Silvio traz uma série de flashbacks puxados de forma nada sutil por histórias de vida contadas por Senor (interpretado em sua fase madura por Faro) durante o cativeiro. O filme seria melhor com uma edição simples, direto ao ponto e sem os segues melodramáticos.
Em seus melhores momentos, Johnnas, de cabelo descolorido, faz um bom trabalho ao humanizar Fernando Dutra Pinto e lembra o Eminem no clipe de “Stan”— um fã perdido e emocionalmente destruído, assim como o sequestrador, que escreve uma carta parassocial ao ídolo. Nos piores, ele lembra um ator sob extremo desconforto que tinha muito, muito que pagar o aluguel.
Algumas falhas ocasionais no design gráfico e na direção de arte me impedem de dizer que Silvio tem um ótimo design de produção, mas ele já é melhor que O Rei da TV, que errou grave, só pra citar alguns exemplos, em efeitos e nas canoplas dos microfones, que usavam logos atuais das emissoras em cenas que se passavam no começo dos anos 90.
Nesse aspecto, as escorregadas de Silvio são mais sutis, e talvez passem despercebidas por quem não tem olhos tão treinados. Um exemplo é o uso de fontes digitais, feitas para leitura no computador, em sinalizações de Brasília durante os anos 70. Isso seria impreciso, mas perdoável em muitas cidades, mas não na capital federal, já que um dos maiores marcos artísticos da cidade é o seu premiado e mundialmente reconhecido sistema de sinalização feito em Helvetica, desenvolvido pela equipe de Danilo Barbosa, arquiteto formado pela UnB e designer gráfico autodidata.
Apesar disso, há algumas boas locações (como a da casa do Abravanel pai nos anos 40), bons figurinos, bons props de design gráfico e flashbacks bem feitos da juventude de Senor, que foram gravados no centro histórico de Santos. Em uma das cenas, inclusive, dá pra ver o prédio da Bolsa de Café de Santos, atual Museu do Café, que vale a visita.
Rodrigo Faro interpreta bem o Silvio dos anos 70, ambicioso e próximo dos negócios, mas distante da família e da vida doméstica, especialmente da primeira esposa Cidinha (Marjorie Gerardi). Ainda assim, alguns clichês da direção e do roteiro distraem.
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O mau
A história do duplo sequestro dos Abravanel era coisa de filme, estava na cara do gol. Era questão de tempo para que algo tão inacreditável fosse adaptado para os cinemas, mas é uma pena que a adaptação tenha acontecido de forma tão pobre, já que o Brasil sabe fazer boas cinebiografias de personagens populares (como Nosso Sonho e Bingo, o Rei das Manhãs, uma excelente história de anti-heroi).
Mas Silvio quer ser um thriller, não uma história de anti-heroi. No meio do caminho, se torna um melodrama torto, abonatório, que comete um erro imperdoável ao não mencionar o SBT nenhuma vez. E não foi feito para ser uma biografia póstuma, mas pareceu tomar todos os cuidados para manter a mansidão caso ele morresse, o que acabou acontecendo semanas antes do lançamento.
Todas as falhas de caráter de Silvio Santos são escondidas ou imediatamente justificadas por um suposto carisma que é informado, mas simplesmente não aparece na tela— não por falta de talento de Vinicius Ricci, que entrega uma atuação competente na juventude do apresentador— mas porque o roteiro é estéril e transforma a vida de uma das figuras mais interessantes do Brasil numa série sem fim de frases de efeito e flashbacks insossos.
Silvio foi um pai ausente? Compreensível, até o homem do baú tinha daddy issues. Deixou de ficar com a esposa no leito de morte pra jantar com o presidente? Pô, é o presidente! O presidente era milico? Normal! Quem nunca precisou lamber a bota de um militar pra conseguir uma concessão de TV aberta em plena ditadura?
A redenção do Baú da Felicidade, uma maracutaia das grandes à beira da falência, é uma das cenas mais professorais da trama. O roteiro nos pega pela mão e tenta nos convencer de que aquele homem é magnético a ponto de sair pela tangente e escapar de populares revoltados que tomaram calote do Manuel de Nóbrega.
Aliás, a relação de Silvio e o fundador do Baú rende uma cena involuntariamente hilária. Amigos desde os tempos de rádio, Silvio e Manuel de Nóbrega (Duda Mamberti) foram como pai e filho, o que despertou a ira do atual herdeiro da Praça, Carlos Alberto, na vida real (um fato confirmado que ficou de fora da adaptação). A proximidade entre os dois era tanta que, no filme, no escritório de Silvio, há uma cadeira vazia que supostamente pertenceu ao Nóbrega pai com a qual ele conversa, igualzinho ao filme Uma Cilada para Roger Rabbit (1989). Incrível.
Eu diria, inclusive, que Silvio é praticamente uma paródia de Uma Cilada para Roger Rabbit: tem mesa vazia pro “parente” morto com um backstory, tem convívio forçado, tem conexão improvável entre uma celebridade da TV e um homem com o emocional em frangalhos, tem polícia burro… Sinceramente? Por mim, tudo bem.
O feio
Rodrigo Faro é um bom ator? Nem sempre. É um bom imitador do Silvio Santos? Nem sempre. Mas dá pra ver que há uma tentativa, e há sim momentos em que ele consegue conduzir o personagem com segurança e seriedade, e talvez aqui ele tenha sido vítima de seu próprio sucesso. Ver Rodrigo Faro atuando num papel dramático é como ver Silvio Santos atuando num papel dramático. Basta ouví-lo elevar a voz pra se tornar impossível não imaginá-lo de collant, vestido de Beyoncé, durante o quadro Dança, Gatinho, Dança. Na verdade, o que parece aqui é que na maior parte do tempo, Faro faz uma boa imitação de um bom imitador. Seu laboratório provavelmente incluiu horas de Pânico na TV e cortes do Adnet cantando Iron Maiden no 15 Minutos.
O diálogo e a caracterização na sua fase mais madura também não o fazem nenhum favor. É praticamente impossível levá-lo a sério com a maquiagem de Silvio Santos mais velho. Rodrigo Faro de Peruca parece, inclusive, mais jovem que a filha número 1. A química entre Silvio e Fernando talvez seja a parte mais interessante da trama, mas faltaram nos flashbacks a canastrice e malandragem que fizeram de Senor Abravanel um negociador bom a ponto de conseguir escapar de um sequestro.
O péssimo slogan usado no trailer e na comunicação oficial do longa (“um baú também guarda muitos segredos”— como se um baú fosse feito pra alguma outra coisa) é, além de tudo, uma mentira. Não há nada de novo revelado aqui que já não tenha sido exposto em tom heroico pelo próprio Silvio e pelo SBT (ou de forma mais cínica em O Rei da TV), e ainda que a proposta de contar a história do maior comunicador do Brasil a partir de seu sequestro seja boa, o rabo preso do roteiro torna a produção desnecessária e redundante.
Silvio recorre a fórmulas tão óbvias e seguras para arrancar lágrimas que apaga por completo a cultura de Senor Abravanel, talvez o judeu mais famoso do Brasil. A biografia do homem que popularizou a Shalom em seu programa e explicou seu jejum de Yom Kippur no Teleton tem uma cena emocional de um Pai Nosso rezado pelas filhas evangélicas, partindo do princípio extremamente gói de que todo mundo conhece e se emociona com o Pai Nosso. Com isso, se torna o oposto do que Silvio Santos foi em vida: completamente esquecível e com tanto medo de correr riscos que sequer consegue se tornar um clássico camp.
Pela polidez, talvez seja um bom filme para assistir com seu pai ou sua avó. Ou talvez, tão próximo do fim da vida de Silvio, não fosse a hora de contar essa história da forma contundente que ela merece.
Uma última coisa
Quer saber uma história sobre o homem do Baú que realmente merecia ser contada nas telas no futuro? A briga de 40 anos entre o Grupo Silvio Santos e José Celso Martinez, diretor do Teatro Oficina.
Dono de vários terrenos na região do Bixiga, em São Paulo, Silvio tinha como plano desconfigurar o projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi para o Oficina (um dos últimos antes da morte da arquiteta em 92) e erguer torres empresariais de mais de 100 metros de altura no lugar.
Em conversa documentada pela Folha de S. Paulo, o apresentador até ameaçou levar a Cracolândia para os arredores do teatro, uma tática completamente Doutor Abobrinha das ideias. Inclusive, Pascoal da Conceição, intérprete do personagem do Castelo Rá-Tim-Bum, não sabia na época, mas seu personagem foi inspirado em Silvio Santos— o empresário, não o da TV.
Conta-se que certa vez, o dono do Oficina, já cansado do arranca-rabo de décadas, argumentou: “Silvio, eu vou morrer e você vai morrer, mas o Teatro Oficina vai continuar”, ao que Silvio respondeu: “Eu, não! Eu vou viver pra sempre!”
Deu no que deu: morreram José Celso Martinez e morreu Senor Abravanel, como um Ozymandias da cultura popular brasileira. O terreno vai dar lugar ao Parque do Bixiga, conforme votação na Câmara Municipal de São Paulo aprovada em julho deste ano. Nas telas, a disputa entre Silvio Santos e Zé Celso certamente traria um recado mais satisfatório: se todos os reis morrem, então que virem parque.
Silvio (2024) ★★☆☆☆
Dirigido por Marcelo Antunez
Elenco: Rodrigo Faro, Johnnas Oliva, Poliana Aleixo, Bruna Aiiso, Vinicius Ricci, Marjorie Gerardo, Duda Mamberti
Em cartaz nos cinemas
Nossa, se eu já tinha uma opinião impopular sobre o homem do baú. Isso só aumentou. Que ideia genial construir torres empresariais e ameaçar levar a cracolândia junto. Fora o fato que escondeu uma das esposas e posava como solteiro porque seria melhor para se inserir no mundo do entretenimento, essa mesma esposa que foi a primeira a investir nele.
Não sei nem o que comentar, só sentir. O pranto de quem é r... não me comove.
Lyara, se não for coincidência você estava naquela reunião!!!
Bom... trabalho no setor público, mais precisamente na Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, órgão incumbido de implantar o Parque do Bixiga.
Recentemente tivemos uma reunião para tratar do parque onde tinha representantes do poder público, órgãos de controle, classe artística e sociedade civil no geral. Ao longo da reunião eu reparei que tinha uma pessoa muito familiar no meio de todos e perguntei para a representante do Teatro Oficina: aquele é o Dr. Abobrinha?! E ela me confirmou que, sim, era! Na hora eu fiquei super emocionada, porque estava encontrando uma figura que marcou minha infância e que justamente estava ali, dessa vez, pedindo para que o "Castelo" permanecesse e que um prédio de cem andares não fosse construído.
No final da reunião, tive a oportunidade de fazer uma fala de encerramento e foi inevitável não destacar que eu jamais imaginaria que quase 30 anos depois, já na vida adulta, eu estaria de frente com o Dr. Abobrinha e agora defendendo o "Castelo"!!! O Pascoal pegou o microfone na hora, soltou o clássico "esse castelo será meu... meu... meuuuu" e contou que o Zé Celso justamente comentava com ele sobre a similaridade das histórias do Castelo e do, agora, Parque do Bixiga. Foi genial!
Tive que tietar e tirei uma foto com ele, pena que aqui não dá pra colocar anexos!!!!!!!!!
Enfim, te acompanho aqui e aí li seu texto hoje e achei demais, pensei "ela estava lá aquele dia, não é possível"!!!!!!!