Vou confessar minha maior falha de caráter: não sou muito de filme de terror. Eu adoro efeitos práticos, não me impressiono fácil, não tenho absolutamente nada contra o demônio… mas sou uma avó que fica com raiva quando se assusta. É ultrajante. Raramente consigo apreciar um filme de terror pela iminência de um jumpscare, o que é um defeito meu, já que filme de sustinho é apenas um dos subgêneros de um universo gigantesco.
Dito isso, ‘Late Night With The Devil’ (2023), dos australianos Cameron and Colin Cairnes, é um desses casos de horror pra quem não gosta de horror. Não, não tem sustinho, fique tranquilo. Aliás, três coisas além do horror me atraíram a ponto de aceitar a possibilidade de passar raiva: a ambientação, o universo dos late nights dos anos 70 e um tipo de sensacionalismo que é muito familiar pra quem cresceu vendo TV nas décadas seguintes, inclusive aqui no Brasil.
Vou falar de cada um deles. Mas antes, um recadinho.
O diabo está nos detalhes
‘Late Night With The Devil’ se passa nos anos 70, uma época em que qualquer artista e comunicador nos Estados Unidos precisava transitar com cautela nos limites da tensão geopolítica e do conservadorismo da era Nixon.
Em meio a tragédias pessoais, o apresentador fictício Jack Delroy, brilhantemente interpretado por David Dastmalchian (‘Duna’, ‘Esquadrão Suicida’, ‘Oppenheimer’) vê seu programa Night Owls consecutivamente perder audiência para o Tonight Show, que se manteve imbatível por décadas também na vida real.
(Inclusive, indico o documentário ‘The Story of Late Night’, da CNN, se você tem interesse em entender como o formato surgiu e persiste até hoje. Não tá disponível no streaming, mas e daí? Prestigie a 🏴☠️ distribuição audiovisual alternativa! 🏴☠️)
A bala de prata de Delroy para voltar às graças do público é fazer um bom episódio de Dia das Bruxas. Pra isso, ele traz um paranormal, um ilusionista cético especialista em refutar charlatões e a autora de um livro sobre uma seita satânica que chocou o país, além de uma ex-participante desse mesmo culto. O longa é um found footage, ou seja, o que vemos no filme é a “íntegra” do episódio como foi exibido.
Quem acompanha essa newsletter há mais tempo vai chutar que o que me atraiu em ‘Late Night With The Devil’ foi a estética. E é verdade. A arte de Otello Stolfo e time brilha nos cenários. Tem muito mid-century modern e aquela paleta outonal típica dos anos 70 no estúdio.
Os props de design gráfico (como livros e revistas) e os motion graphics capturam perfeitamente como falhas analógicas podem produzir resultados assustadores: glitches, fitas que engasgam, cortes bruscos, som distorcido.
A direção de fotografia é do veterano Matthew Temple, que trabalhava em programas de estúdio da década de 80. A solução pra dar a ambientação perfeita foi desenterrar luzes antigas em depósitos, usar configurações de iluminação menos cinematográficas e mais características de programas como o Tonight Show with Johnny Carson, colocando em prática tudo que Temple aprendeu no começo da carreira, quarenta anos atrás, com os dinossauros da televisão que trabalharam nos anos 60 e 70. Deu certo.
Em entrevista à Variety, os diretores contaram que equipe levou muito a sério a ideia de autenticidade em todos os processos, e o resultado é lindo. Tudo captura a sensação ameaçadora de ser a única pessoa da casa acordada tarde da noite, vendo TV ao vivo, esse organismo tão imprevisível. Qualquer coisa pode acontecer.
E é por causa do espírito de autenticidade que o uso de inteligência artificial em três gráficos partiu meu coração. Todos os visuais feitos por humanos (ou seja, praticamente o filme inteiro) são excelentes, mas esses três específicos são ruins, inacabados e sem personalidade. Não sei se isso é percebido por olhos não treinados, mas eu percebi de cara.
Mas não deixe isso te desanimar. É uma queda na qualidade que arranha, mas não destrói por completo o mérito de uma produção com orçamento e prazo tão apertados — foram 400 mil dólares e 12 meses pra produzir algo que parece que foi feito na época, não só pelos visuais, mas pela recriação perfeita da atmosfera de pânico satânico do fim dos anos 70.
Medo do capeta
O pânico satânico é um sentimento de medo coletivo, com fortes tons moralistas e religiosos. Frequentemente ligado a casos de abusos, sequestros e assassinatos, é uma tentativa da população de explicar o inexplicável com uma suposta motivação espiritual. Na época do caso Tate-LaBianca (1969), se especulou muito que a Família Manson fosse uma seita do demônio, e que os assassinatos teriam sido parte de rituais ocultistas.
Um ponto muito importante é a participação da mídia de massa na construção desse medo, aguçando a curiosidade do espectador com supostos rituais, boatos e fenômenos atribuídos a papai do chão. Às vezes isso leva a acusações infundadas que destroem a vida dos envolvidos, como nos casos Evandro e Escola Base, por exemplo.
Mas isso não acontece só em crimes com vítimas. Na verdade, nem precisa existir crime pra existir pânico satânico. Basta fugir da norma cristã ou fazer muito sucesso pra ser acusado de ter pacto com Satanás. Ou queimar um monte de cruz num clipe, tipo a Madonna em Like a Prayer. Ou ser um fodido que nem o Toninho do Diabo.
Aqui no Brasil, acontecimentos e fenômenos nada relacionados ao diabo, como acidentes e relatos de OVNIs, frequentemente ganhavam essa mística sombria, herança da histeria moral norte-americana.
A diferença do pânico dos Estados Unidos é que aqui essa mística ganha tons de racismo à brasileira — quase sempre associando atividades satânicas à “macumba” [sic] — e tem conexão com a perda de espaço da Igreja Católica para novos movimentos, como o espiritismo kardecista, o new age e o evangelismo neopentecostal.
Surge, então, o pânico satânico made in Brazil: um fascínio por cartas psicografadas pelos espíritos dos famosos (e a demonização da prática por evangélicos), o disco da Xuxa de trás pra frente, o punhal no boneco do Fofão, o quadro Lendas Urbanas do Gugu, os supostos rituais satânicos de Fernando Collor na Casa da Dinda e a imagem de Jesus na bunda do cachorro.
É por isso que quando assisti ‘Late Night With The Devil’, lembrei imediatamente desses momentos. Mas, muito mais que o Lendas Urbanas, ou o Gilberto Barros alertando para os perigos do Yu-Gi-Oh, o baralho do diabo, esse filme me trouxe lembranças antigas da TV local. Um tipo de trauma que só os veteranos nas trincheiras de Hanói e as crianças que viam TV Diário nos anos 2000 conhecem.
Pânico na Praça da Imprensa
Fundada em Fortaleza em 1998, a TV Diário pertence ao mesmo dono da TV Verdes Mares, afiliada da Globo no Ceará. A diferença crucial entre as redes irmãs é que a Diário nunca esteve sujeita às amarras editoriais da Globo, e isso foi um diferencial. Seu DNA 100% cearense é terreno fértil pra programas com muita personalidade e uma linha de shows que era, especialmente nos anos 2000, um ponteiro frenético entre a marmota, o sensacionalista e o genial.
A emissora trouxe nomes consagrados do rádio, deu palco a astros do forró e do brega que a mídia sudestina insistia em ignorar, e revelou talentos como Tirullipa, estreante na TV como repórter do Miss Catiroba (uma espécie de concurso de mulher feia do ‘Programa Ênio Carlos’.)
Exibida via parabólica pro país inteiro, a TV Diário virou um fenômeno de audiência entre a comunidade nordestina espalhada pelo Brasil, e isso não deixou a Globo muito feliz. Em 25 de fevereiro de 2009, o canal 22 de Fortaleza voou perto demais do sol e deixou de ser transmitido em rede nacional por decisão da emissora dos Marinho, ficando restrito ao sinal aberto no Ceará.
Podres poderes. Mas essa é uma história pra outra edição.
O fato é que o pânico satânico torou na linha de entretenimento da TV Diário entre os anos 90 e 2000. Obviamente não a ponto de arruinar a vida de alguém, mas lembro de deixar de consumir muita coisa quando criança ou sentir muito medo por causa de algumas matérias, especialmente quando minha mãe começou a frequentar igreja evangélica.
A TV Diário subestima e muito a importância de seu acervo pra história da televisão cearense, então infelizmente há pouquíssima documentação desses momentos na internet. Fico devendo esses registros, que tecnicamente são lost media. Espero que isso mude em breve.
As Aves de Jesus de Juazeiro do Norte
“Na pequena comunidade religiosa Penitência Pública Peregrina do Braço da Cruz de Jesus Cristo, todos os homens se chamam José Alves de Jesus e todas as mulheres atendem por Maria Alves de Jesus. As oito casas onde moram, no bairro Tiradentes, em Juazeiro do Norte, a 562 km de Fortaleza, são todas brancas, com portas e janelas pintadas de azul. Às seis da tarde, pontualmente, as portas se fecham para o mundo, mas as luzes nunca são acesas.” Fonte
Os penintentes, conhecidos como Borboletas Azuis e Aves de Jesus, eram todos idosos, e se tornavam alvo frequente da mídia e da curiosidade do povo porque viviam sem eletricidade e não usavam dinheiro nem documento. Eles faziam longas peregrinações a pé no sul do Ceará e na divisa com a Paraíba, e saíam de porta em porta pregando a palavra de Padre Cícero, de quem eram muito devotos, além de anunciar que o mundo ia acabar em chamas, na virada do milênio.
O disco do RBD
O pânico satânico atingiu o ápice nos anos 2000 quando a produção do programa levou “especialistas” que, com a ajuda de um software de última geração (o Audacity), apontaram um suposto pacto demoníaco feito pelo grupo pop mexicano RBD para alcançar sucesso internacional e levar Satanás ao coração das criancinhas.
Lembro como se fosse hoje: Rebelde, quando executada ao contrário, dizia “abraça-me demônio”. Já em Sálvame, era possível ouvir Anahí cantar “o mal me leva”.
Nunca mais toquei nos meus CDs, e isso me levou a drogas mais pesadas como High School Musical, Glee e o inevitável teatro musical.
Vidente Jucelino Nóbrega da Luz
Entre uma imitação de velho e um close ginecológico em assistentes de palco vestidas de tigresas, uma previsão do fim do mundo começando por Fortaleza. Esta era a tarde de domingo típica na companhia de João Inácio Jr, uma espécie de Orson Welles cearense.
Esse vídeo é bem longo. São 37 minutos sem merchans, que mostram a capacidade invejável de João Inácio Júnior, um titã do rádio cearense, de segurar a audiência e enrolar até dar uma dor.
Anunciado com pompa como o “o maior vidente do globo terrestre”, o paranormal Jucelino Nóbrega da Luz era presença frequente no João Inácio Show, exibido na hora do almoço. Ele teria previsto as mortes de Ayrton Senna, Lady Di e Chico Xavier e a vitória da Itália na Copa de 2006. Jucelino também alega ter acertado a metragem exata do buraco em que Saddam Hussein se escondeu, prevendo até a existência de um tapetinho.
Entre outras coisas, Jucelino previu o fim de Fortaleza começando pela praia, o que foi um dos maiores medos de 9 em cada 10 crianças cearenses. Ele não era o único na grade da TV Diário: tinha também o Vidente Carlinhos, que frequentemente aparecia no programa seguinte, do saudoso Ênio Carlos.
As semelhanças da TV com ‘Late Night With The Devil’ são absurdas: o vidente confrontado com um suposto erro em suas previsões, a presença de “especialistas” no assunto que acaloram o debate (no filme, um hipnotista; no programa da TV Diário, padres e pastores de Fortaleza), as pausas estratégicas pra palavrinha dos patrocinadores…
Brasileiros, especialmente os cearenses, vão se sentir mais do que familiarizados com os elementos do filme, que tem uma narrativa convincente, excelentes atuações e visuais de encher os olhos. Vale a pena assistir.
Late Night With The Devil
(2023, Estados Unidos, Austrália, Emirados Árabes Unidos)
dirigido por Cameron Caines, Colin Cairnes
Disponível no 🏴☠️ audiovisual paralelo 🏴☠️
Nota: 3.5/5
Newsletter
, newsletter da amiga Hysa Conrado aqui no Substack, traz resenhas de livros nacionais e crônicas pra saborear numa mordida só. Uma fruta rara do Jequitinhonha.
Filme + música
Em ‘Rivais’ (Challengers), de Luca Guadagnino, tudo é sexo, exceto sexo, que é tênis. Nenhum outro esporte combina de forma tão perfeita o pacto de energia, tensão e movimento entre duas pessoas — ou três. Veja pelo triângulo amoroso entre Zendaya, Mike Faist e Josh O’Connor e fique pela trilha sonora original, mais um fruto delicioso da premiada parceria entre Trent Reznor e Atticus Ross (Soul, Watchmen, A Rede Social).
Menção honrosa para o uso de Pecado, de Caetano Veloso, numa cena que conferiu a Zendaya um ar de protagonista de novela de Gilberto Braga. Aliás, sabia que a música toca por exatos 13 minutos do filme? Busque no Google “caetano veloso treze”
Rivais está em cartaz no cinema desde a última quinta (3/5).
Campanha de ajuda
Equipes de tech desenvolveram um site pra ajudar a mapear e identificar pessoas que precisam de resgate na região metropolitana de Porto Alegre. O objetivo do AjudeRS é unificar as informações de pessoas, animais, abrigos, resgates, operação, focando em manter dados atualizados. Se você mora na região, ofereça ou peça ajuda no AjudeRS. Adicione ocorrências pelo WhatsApp enviando uma mensagem para este número: https://wa.me/556799634831
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Saudade da programação da TV Diário ❤️
esse terror, com cara meio tosquinha, não fica parecendo comédia?