Sabe como os alemães sempre têm uma palavra nova pra tudo? Os Estados Unidos funcionam de forma parecida, só que com CNPJs. Lá, existe um produto que traduz cada nuance e anseio da experiência humana: a alegria é o desfile de Ação de Graças da Macy’s, a tristeza é ver mais uma Abercrombie & Fitch fechar, e a raiva é tipo um Cheetos picante, só que no seu coração. São necessárias 80 mil pessoas no estádio, ou seja, 7,9 milhões de Big Macs, pra se encher um Maracanã.
A explosão de Filmes de Produtinho nos últimos anos, como ‘Air’, ‘Blackberry’, ‘Flamin' Hot’ e, é claro, ‘Barbie’, expõe as veias obstruídas da América do Norte. E eu confesso que nunca me vi atraída por histórias do tipo.
Até ontem.
Quando dei play em ‘Unfrosted’ (pt: ‘A Batalha do Biscoito Pop-Tart’, disponível na Netflix), me segurei de forma cética à promessa de ver participações especiais de comediantes que gosto. Mas de repente me vi acalentada por um filme que, com o risco de soar meio Taylor Swift (“queria viver em 1830, só que sem os racistas”), parecia ser feito em outra época, só que de um jeito bom.
Este post NÃO é uma resenha, então não vou me alongar muito na descrição do filme em si. O que você precisa saber é que este é o longa de estreia de Jerry Seinfeld como diretor, que se passa na década de 60 e que é inspirado num biscoito pré-cozido com recheio. O Pop-Tart foi inventado pela Kellogg’s em meio a uma rivalidade pesada com a criadora do Oreo, e o filme se propõe a contar essa história, ou pelo menos uma parte dela.
Eu não fazia a menor ideia do que era um Pop-Tart. Fui criada no Nordeste do Brasil comendo soja, arroz integral e vagem. O mais próximo de ultraprocessado que cheguei na infância foi o Tot’s Sabor Xuxa— “assado no forno”, o mesmo slogan sugerido por Don Draper pra fazer cigarro parecer saudável.
Bom, o fato é que no meio do filme, percebi que ‘Unfrosted’ era… diferente. Parecia algo que eu não vejo há muito tempo. Eu estava enganada: ele não é um "filme de produto”, é um Filme de Locadora. E é disso que vamos falar hoje.
Tá, mas o que é um filme de locadora?
Uma vez, numa das épocas mais tristes da minha vida, eu assisti ‘Dançando no Escuro’ do Lars Von Trier de madrugada. É um filme tristíssimo com a Björk no papel de uma mãe pobre, imigrante e operária que tá ficando cega, mas que precisa continuar trabalhando pra sustentar o filho. Aquele filme me deixou tão emocionalmente oca que pra não me matar eu precisei assistir ‘Alvin e os Esquilos 2’ em seguida.
Assim como não se fazem mais filmes em technicolor, o Filme de Locadora, como ‘Alvin e os Esquilos 2’ (estrelado pelo ator indicado ao Globo de Ouro™ e ex-membro da Igreja da Cientologia Jason Lee) é um dardo de morfina numa cultura machucada, uma arte perdida; algo feito com um material que não existe mais. E este material é o otimismo de uma América pré-crise de 2008.
Sei que é difícil de acreditar, mas um dia já vivemos livres de filme de heroi. Tente imaginar o joie de vivre de uma indústria cinematográfica sem o monopólio da Marvel, onde era possível ter um filme leve, de orçamento médio, que performa razoavelmente nas bilheterias. Nem sempre o mundo precisa de um filme ~épico~, ~icônico~ ou outros adjetivos da moda. Às vezes você só quer sentir o cérebro escorrer pelo ouvido.
O que um filme de locadora não é
Filme de locadora não é a mesma coisa de straight-to-DVD/direct to video. Muitos filmes de locadora foram aos cinemas, e muitos inclusive foram sucesso de bilheteria. Direct to video é uma estratégia comercial; o filme de locadora é um pergaminho numa linguagem morta, uma cápsula do tempo com registros de um mundo que, pro bem ou pro mal, já deixou de existir.
Filme de locadora não é necessariamente ruim. Ele parece ruim, porque você cresceu e o seu coração ficou sombrio. Geralmente é bem meia-boca mesmo, mas vez ou outra surpreende. Tal como Jesus se disfarça de mendigo pra testar o altruísmo dos homens, às vezes o Martin Scorsese se disfarça de filmes assim pra testar nossa fé no cinema.
Filme de locadora não é stoner movie/besteirol. Você alugaria (e provavelmente alugou) ‘Superbad’, ‘American Pie’, ‘Click’ e ‘Eurotrip’ porque sabia que seria engraçado, por ter o Adam Sandler ou pela promessa de cena de sacanagem. O que faz um Filme de Locadora é a cara de ruim. Ele precisa passar despercebido por você.
Não há um limite de data de lançamento de filmes de locadora, mas a curva segue um caminho similar ao ciclo do home video: naturalmente a maioria tá entre as décadas de 80 e 2010, com um grande boom nos anos 90 e um último gás no começo dos anos 2000. É muito difícil fazer um filme de locadora nos tempos atuais, mas há quem consiga.
A característica decisiva do Filme de Locadora é que ele nunca sai da prateleira da locadora. Simples. Se você aluga o filme de livre e espontânea vontade, ele já não pertence à categoria. No máááximo, você compra quando o estabelecimento fecha e faz uma promoção de 50 filmes por R$ 1,00— esses são os últimos que você escolhe pra fechar o pacote, porque é isso ou, sei lá, Diante do Trono: Ao Vivo em Goiânia.
São exemplos de Filmes de Locadora:
• Adaptações live-action no estilo Roger Rabbit, como ‘Os Flintstones em Viva Rock Vegas’, ‘Scooby-Doo 2: Monstros à Solta’, ‘Looney Tunes: de Volta à Ação’ (com a vencedora do Emmy™ e membro da Igreja da Cientologia Jenna Elfman) e ‘As Aventuras de Rocky & Bullwinkle’ (ou Alceu e Dentinho, se você for o Aldo Rebelo);
• Comédias românticas nota 6, como ‘Voando Alto’, com Gwyneth Paltrow (do brasileiro Bruno Barreto, que dirigiu ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos!!!’);
• Nacionais como ‘As Aventuras de Agamenon, o Repórter’ e ‘Flordelis: Basta Uma Palavra Para Mudar’ — sim, sobre aquela Flordelis;
• Filmes de dança e sequências, como ‘As Apimentadas’ e ‘Sob a Luz da Fama: O Poder da Paixão’;
• Filmes motivacionais cristãos, como ‘Desafiando Gigantes’;
• Filmes do grupo de acesso da Disney, como ‘Johnny Tsunami’;
• Filmes de cachorro e suas sequências, como ‘Air Bud’— não confundir com Filme de Cachorro que Morre, como ‘Marley e Eu’ ou ‘Sempre ao seu Lado’. Por algum motivo, as pessoas adoram filme de cachorro que morre. Credo.
Fiz uma lista com alguns deles no meu Letterboxd.
A única maneira de ver um filme de locadora é esperando ele chegar até você. E ele te escolhe; geralmente na Record antes do Rodrigo Faro, ou na Tela de Sucessos do SBT. No caso da Globo, esses filmes costumam ficar restritos à Sessão da Tarde, Sessão de Sábado, ou Supercine, se forem mais apimentados. Nada de Tela Quente.
É um Filme de Locadora que passa na sala de espera do dentista, na tarde de Natal na casa da sua avó, na TV de 14 polegadas da UPA ou no seu momento mais vulnerável (na depiladora).
E aí, nesse momento de chagas pra lá de abertas, acontece um milagre: o Filme de Locadora te pega pela mão e te ganha. Você se distrai e quando vê já tá assistindo e pensando: taí, talvez meu cachorro também saiba jogar vôlei.
‘Unfrosted’ marca todas as caixas anteriores. É Galinha Pintadinha de adulto. Uma experiência completa de dissociação e morte do ego. Mas vamos a uma análise mais prática do filme e de como ele se encaixa nessa descrição.
É anacronicamente colorido
E eu nem tô falando só do tratamento de cor. Em ‘Unfrosted’, a guerra pelo café da manhã perfeito tem o mesmo impacto cultural da Corrida Espacial, o que é a premissa mais tonta que eu já vi na minha vida.
Só um ricaço ou alguém com muito tempo livre na mão teria uma ideia assim, reservada aos poucos que conseguem enxergar o mundo de forma tão colorida, cartunesca e deslocada da realidade em 2024. E olha só que bacana: Jerry Seinfeld é um ricaço com muito tempo livre na mão.
‘Unfrosted’ poderia ter sido escrito em qualquer ano entre 1963 e 20564, não por ter piadas atemporais, mas por ser tão deliciosamente lobotomizado. Um mundo louco, inspirado em desenhos antigos da Warner Bros, em que JFK era o presidente e uma casa custava 12 reais.
Mas falando da cor literal, Filmes de Locadora são quase sempre alegres, bem iluminados, com cores quentes em evidência e cores frias neutralizadas, algo que foi soterrado pela terrível Fase Azul do Cinema, com representantes como ‘Crepúsculo’, que parecia ser filmado com um frasco do perfume Quasar na frente da câmera.
Em ambos os aspectos, ‘Unfrosted’ faz o requisito. ✅
É apolítico ou propositalmente alienado
A maior característica de um Filme de Locadora é o resgate de tempos mais simples. Tempos nos quais a gente não sabia o que absolutamente todos os artistas tinham a dizer sobre todos os assuntos o tempo todo.
Felizmente, apesar das últimas opiniões infelizes de Seinfeld, o filme é tão alienado que menciona Hitler, Mussolini, JFK, nepotismo, lobby, tortura, teorias conspiratórias sobre o programa Apollo 11, narcotráfico, Jamiroquai, movimento sindicalista e União Soviética e ainda assim você não sabe de que lado ele tá.
Ao contrário do isentão comum, que evita conversas difíceis, ‘Unfrosted’ menciona absolutamente todos os eventos que já aconteceram na história sem emitir nenhuma opinião, lançando assim o Isentão 2.
É exatamente disso que precisamos: não saber a opinião de famosos. Boa, Seinfeld.
Mais um ponto pra ‘Unfrosted.’ ✅
Tem cameos e participações especiais
Muita gente tem se referido a “cameo” como toda e qualquer vez em que um ator é pago pra fazer seu trabalho e participar de um filme. Nessa linha de raciocínio, eu deveria começar a chamar todos os meus freelas de cameos.
Na verdade, um cameo é uma breve participação especial de uma personalidade, interpretando a si mesma ou retornando a um papel consagrado de um outro universo pré-estabelecido.
Em ‘Unfrosted’, há muitas escolhas interessantes de elenco (eu fiquei EM PÉ NA CADEIRA quando vi quem interpretava o primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev), mas cameos de verdade, só tem dois: Jon Hamm e John Slattery que, reprisando os papéis dos publicitários Don Draper e Roger Sterling, sugerem um nome e um apelo… sensual pro novo produto da Kellogg’s.
Como uma grande especialista na diegese de Mad Men (terminei a série duas vezes e todo ano revejo a primeira temporada), sei que a empresa de cosméticos Belle Jolie se tornou cliente da agência Sterling Cooper entre março e novembro de 1960. Em ‘Unfrosted’, que se passa em 1963, Don Draper sugere o nome ‘Jelle Jolie’ pra empresa. Ou seja, o cara tá reciclando ideia de 3 anos atrás e remanejando pra outros clientes huahuahahe incrível!!! <3 (já vi acontecer na vida real).
Mas sim. Cameo, check. ✅
Presença de membros do SNL
Em ‘O Capital’, Karl Marx define o conceito de exército industrial de reserva como a força de trabalho inativa. São trabalhadores e trabalhadoras que, mesmo qualificados, não conseguem se manter no mercado, já que para fazer o capitalismo funcionar, é necessário existir desemprego.
É essa maquinaria perversa que joga para informalidade tantos ex-membros do Saturday Night Live. Eu poderia falar por horas de como o SNL funciona exatamente como a indústria do kpop, mas como sempre digo, isso é assunto pra outra edição.
Periodicamente, a granja do Lorne Michaels (uma espécie de Boninho da NBC, só que mais diabólico) estreia um elenco de mais ou menos 15 cast members das categorias de base da comédia americana, que escrevem e atuam em sketches semanais.
Desses 15, saem pouquíssimos Adam Sandlers, Eddie Murphys ou Chris Rocks (categoria 1), que revolucionam pra sempre a cultura como conhecemos; uns ou outros que ganham tração (categoria 2; Fey, Hader, Poehler, Samberg— e até Mulaney, que era só roteirista); Jimmy Fallon, que é o anticristo (categoria 3); e, por último, o exército industrial de reserva (categoria 4), remanejado indefinidamente para Filmes de Locadora.
Em ‘Unfrosted’, eu contei pelo menos NOVE ex-membros do SNL. É o maior projeto de distribuição de renda desde o Bolsa Família.
Errata: Na verdade, 17 membros do Saturday Night Live estão no longa de Seinfeld! Procure “Jerry Seinfeld 17” no Google e descubra quais são.
Tá aprovado. ✅ O que nos leva ao próximo tópico.
Tem este ator
✅✅✅✅✅✅
Veredito
‘Unfrosted: The Pop-Tart Story’ marca todas as caixas de um bom exemplo de filme de locadora. Não vai mudar sua vida— talvez nem mude sua semana. Mas é engraçadinho e leve; tem o mesmo efeito psicológico de ver o Jerry (o rato, não o Seinfeld) descendo o cacete no Tom e pensar “Ha! Bons tempos.”
Mais do que um filme de produto, é um filme sobre o poder da amizade. Não amizade em geral, mas as amizades do Jerry Seinfeld; e sobre o quão longe dá pra chegar quando se é *exatamente* o quarto cara mais engraçado do seu grupo de amigos.
Eu amei. Nota 3.
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Tenho a sensação de ver "filmes de locadora" quando estou na casa do meu pai. ele só assiste filmes nos canais de filmes da TV (hbo, telecine, megapix, etc) rodando os canais e as vezes pegando algum aleatório já pela metade
Definitivamente assistiria depois do seu texto, se não fosse mãe solo de uma criança de 4 anos e não tivesse com meus direitos culturais suspensos.